O dia 19 de abril no Brasil era marcado, até 2022, por comemorações em alusão ao então “Dia do Índio”. Foi a partir deste ano que, após promulgação da Lei nº 14.402/22, a nomenclatura da data foi alterada para “Dia dos Povos Indígenas“. A mudança, segundo lideranças, representa uma correção no termo para abranger a pluralidade dos povos, que soma mais de 1,5 milhão de brasileiros e 305 etnias.
A lei partiu de uma propositura de autoria da ex-deputada Joenia Wapichana, hoje presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
Segundo Kleber Aripuna, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a mudança na nomenclatura é “muito simbólica” porque, além de ter um teor educativo, é uma reivindicação do movimento indígena para ampliar o entendimento sobre as populações indígenas do país. Isso porque, diz ele, o “Dia do Índio” não representava a pluralidade dos povos indígenas brasileiros.
“É uma demanda de muito tempo. Primeiro, para começar a desconstruir todo um preconceito social, institucional, enraizado na sociedade como um todo, em relação à diversidade e à magnitude de povos indígenas existentes no nosso país. A população brasileira, o Estado brasileiro, desconhece muito da sua própria história. Não reconhece ou não conhece a existência de mais de 305 povos indígenas no nosso país, falantes de mais de 274 línguas diferentes, com diversidade de cultura, tradições, cosmologia, que fazem parte desse processo de construção, de erguer o Brasil”, disse.
Como surgiu o “Dia do Índio”?
A data comemorativa surgiu após o Congresso Indigenista Interamericano, que aconteceu em abril de 1940 no México. O evento reuniu autoridades de vários países na região para discutir políticas em defesa dos povos indígenas, mas durante o congresso, os protagonistas — a população indígena —, realizaram um grande protesto e se negaram a participar do encontro por considerarem que não teriam voz.
Foi apenas no dia 19 de abril que os indígenas resolveram participar do congresso, o que motivou a escolha de celebrar a data. O “Dia do Aborígene Americano” foi uma das decisões tomadas pelo Congresso Indigenista Interamericano, porém, nem todos os países que participaram do evento adotaram a celebração.
No Brasil, por exemplo, a data só foi criada em 1943 por meio de um decreto-lei. O general Marechal Rondon, que tinha origem indígena e foi responsável em 1910 pela criação do órgão que se tornaria a atual Funai, convenceu o então presidente, Getúlio Vargas, sobre a necessidade da data.
Por que dia dos povos indígenas?
Na apresentação do projeto que alterou a nomenclatura de “Dia do Índio” para “Dia dos Povos Indígenas”, a então deputada Joenia explicou que o pedido de modificação “objetiva atualizar para uma nomenclatura mais respeitosa e mais identificada com as comunidades indígenas a justa homenagem que é prestada nessa data”.
“A nossa intenção ao renomear o dia do ano destinado a, de forma simbólica, ressaltar não o valor do indivíduo estigmatizado “índio”, mas sim o valor dos povos indígenas para a sociedade brasileira, é reconhecer o direito desses povos de, mantendo e fortalecendo suas identidades, línguas e religiões, assumir tanto o controle de suas próprias instituições e formas de vida quanto de seu desenvolvimento econômico”, diz a proposta.
Em 2023, a data foi comemorada pela primeira vez com a nova denominação: Dia dos Povos Indígenas. A lei chegou a ser vetada pelo presidente Jair Bolsonaro, mas o veto foi derrubado pelo Congresso. De acordo com Aripuna, a alteração é um passo para “quebrar barreiras de preconceitos na sociedade e começar a trazer à tona essa diversidade dos povos indígenas existentes no nosso país”.
Em pronunciamento para professores do país publicado nas redes sociais nesta quinta-feira (18), Sonia Guajajara, atual ministra dos Povos Indígenas do Brasil, explicou o porquê de não concordar em falar “dia do índio” e a forma de falar a respeito dos povos indígenas. “Como professora, eu sei o quanto é importante passarmos essas informações corretas, porque muitos que estão tendo contato pela primeira vez com essa questão, vão aprender e reproduzir as informações para sua família, amigos e todos ao seu redor”, disse Guajajara no vídeo, ressaltando “é muita diversidade e história para caber em um único termo”.
“Contamos com mais de 100 grupos isolados, sem contatos com outros povos. São diversos costumes e tradições vivivas pelos povos indígenas Brasil adentro que precisam ser conhecidas e valorizadas. Conhecer nossa cultura é conhecer a história do Brasil, pois estamos aqui há séculos, muito antes da cruel invasão que ainda chamam de descobrimento”, diz Guajajara no vídeo.
A ministra finaliza dizendo que o Ministério está empenhado em “realizar atualizações que precisam ser feitas sobre nossa história e também a realidade de nossos dias atuais em materiais didáticos, que irão auxiliar professoras e professores” e que começar “chamando de indígenas ao invés de índio já é um bom começo”.
“Povos Indígenas” é correção histórica
Uma das problemáticas em torno do termo, explica Cláudia Lago, professora de História dos Povos Indígenas da UFPB e coordenadora do Grupo ABAIARA – Estudos Indígenas da Paraíba, é que o uso da palavra “índio” remetendo aos povos originários brasileiros surgiu no período da colonização, quando Colombo achou que havia chegado às Índias e deu esse o nome dos povos nativos das Américas. Ao longo dos anos, o termo permaneceu, mas era criticado justamente por não remeter a populações diferentes, mas a um único povo. “A terminologia índio é como se colocasse todos os grupos humanos das américas na mesma condição cultural específica, de linguagem, de costumas, e que na verdade são diferentes”, diz.
“Quando falamos dos povos indígenas ao longo dos anos, nesse processo de reconhecimento e de resistência de muitos deles, não só no Brasil, mas de todas as Américas, aos poucos eles [os povos] foram conseguindo conquistar espaço no sentido da auto-afirmação e da étnico identificação. Ou seja, eles se identificam como indígenas no sentido de especificidades de grupos culturais, mas cada grupo tem também as suas particularidades. Então não é identificar o índio, mas o povo indígena de tal nação ou de tal cultura”, diz Lagos, exemplificando que, no caso do Brasil, pode se falar dos povos indígenas portuguaras, tabajaras, cariris, caiapós, banyuá, entre outros.
Pelo contexto histórico como surgiu o termo “índio”, Raquel Tupinambá, indígena do baixo Tapajós, coordenadora do Conselho Indígena dos Tupinambás e doutoranda em Antropologia Social pela UNB, ressalta que a alteração, na verdade, se trata de uma “correção” porque a expressão foi “cunhada em decorrência do que os portugueses pensaram ao chegar no Brasil”. “O termo correto é povos indígenas, que se refere a nativos, que estavam aqui antes da chegada dos colonizadores”, diz.
Atualmente, segundo ela, os povos indígenas conseguem utilizar não somente a data, mas agora todo o mês de abril para mobilizar em prol visibilidade das pautas da população indígena, que inclui a vida dos povos, floresta, rios, territórios, “essenciais para a nossa sobrevivência”, diz ela, se referindo a população indígena.
Quem são os povos indígenas do Brasil?
De acordo com o último Censo, de 2022, 1,6 milhão de brasileiros se autodeclararam como indígena. Os Estados com a maior porcentagem de indígenas na sua população foram Roraima, com 14,1%, Amazonas (7,7%), Acre (3,5%) e Mato Grosso do Sul (3,5%).
Os dados sobre etnias, no entanto, estão defasados. De acordo com o IBGE, os últimos dados compilados sobre a quantidade de etnias indígenas no país são do Censo de 2010, que apontavam a existência de 274 línguas indígenas no país e 305 etnias. Segundo resposta do órgão ao Valor, “o IBGE ainda não totalizou essas informações para o Censo 2022”.
Maiores etnias indígenas no Brasil:
Dados do Censo de 2010, os mais recentes disponíveis, segundo o IBGE.
- Tikúna – 46.045
- Guarani Kaiowá – 43.401
- Kaingang – 37.470
- Makuxí – 28.912
- Terena – 28.845
- Tenetehara – 24.428
- Yanomámi – 21.982
- Potiguara – 20.554
- Xavante – 19.259
- Pataxó – 13.588
A lista completa dos dados está disponível no site do Senado, no site do IBGE e na publicação Características Gerais dos Indígenas. A numeração listada é maior porque, explica o Instituto, a “repetição” de algumas etnias ocorre porque essas etnias (repetidas) pertencem a troncos e famílias, ou seja, são grupos que contêm subgrupos.