Mais da metade dos micrompreendedores individuais (MEIs) no Brasil trabalha, na verdade, como empregados assalariados de outras empresas, segundo estudo. A mesma pesquisa aponta que a chamada pejotização poderia ser reduzida com medidas como redução dos encargos trabalhistas sobre a folha de pagamento.
O levantamento usa dados de 2008 a 2019, período em que foram criados mais de 9 milhões de MEIs (quase 70% do total dos CNPJs no país). Para chegar ao resultado, a pesquisadora, mostrou primeiro que o MEI e contratos CLT efetivamente competiam pela preferência das empresas na hora de contratar. Para isso, olhou como a proximidade com antenas 3G afetou a criação de MEIs entre 2008 e 2011, período em que passou a ser possível fazer o registro via internet.
“Ter acesso à internet é essencial para o microempreendedor. Ele vai precisar dela para registrar a empresa, emitir o Documento de Arrecadação do Simples Nacional (DAS) que paga todo mês e também as notas fiscais de cada serviço”, explica a economista.
Os resultados ainda relacionam a facilidade para abrir uma MEI afeta ao comportamento das empresas. Firmas localizadas em regiões mais distantes das antenas acabavam contratando mais empregados sob o regime CLT em comparação com as instaladas mais perto do equipamento.
Mirelli, no entanto, observa que o efeito de diminuição de contratos CLT e crescimento do MEI pode também indicar um aumento do empreendedorismo, que é está dentro do escopo original do programa. “Não é possível dizer, apenas com esse exercício, se essas pessoas partiram para a pejotização”, salienta.
Para entender qual das duas alternativas as pessoas seguiam, a pesquisadora construiu um modelo de equilíbrio geral em que a as pessoas escolhem se tornar empregado com carteira assinada, pejota, microempreendedor ou empresa do setor formal, e alimentou esses modelos com dados da Rais, do Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ) e do Censo de 2010. Replicando como esse modelo se adapta às informações da economia real, como a distribuição dos trabalhadores nas firmas ao longo do tempo, ele encontra que 53% dos que optam pelo MEI optam pela ilegalidade, enquanto 47% se tornam microempreendedores “de verdade”.
“Com base nos resultados, acredito que o custo do trabalhador CLT é um fator importante. A redução desses custos seria boa medida para ajudar a diminuir essas ilegalidades relacionadas ao mercado de trabalho”, diz.
Outros trabalhos recentes também apontam para problemas no desenho do MEI, criado em 2008 com o objetivo de trazer à formalidade a parcela mais vulnerável da população — pessoas que atuam como autônomos ou em pequenos empreendimentos. Ele permite que elas contribuam à Previdência e acessem benefícios como aposentadoria — limitada a um salário mínimo —, auxílio-doença e pensão por morte.
Um estudo recente de pesquisadores do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre FGV) mostrou que o MEI responde por quase que todo o crescimento do número CNPJs no Brasil, de 750,2 mil em 2009 para 3,9 milhões em 2023. Olhando apenas para 2021, ano em que houve um pico na criação de MEIs — eles mostraram que 63% deles haviam sido demitidos de um emprego formal. Dentro desse grupo, apenas 22,6% dos desligamentos foram a pedido do trabalhador.
Outro estudo do Ibre, de 2022, mostrou que 31,3% dos MEIs tinham ensino superior completo, proporção muito acima da média nacional, de 15,7%. Já aqueles sem instrução ou com fundamental incompleto — o público-alvo do programa — eram apenas 13,4%. Ao mesmo tempo, analisando pela ótica da renda, os pesquisadores encontraram que 56,4% dos MEI ganhava mais do que dois salários mínimos no terceiro trimestre de 2022, porcentagem maior que a do universo dos empregados com carteira (32,1%).
“Essa explosão de abertura de MEIs pode parecer um salto do empreendedorismo, mas na realidade é apenas uma forma diferente de inserção no mercado de trabalho, mais barata e atrativa. E com o agravante de que contém grande subsídio à Previdência, que um dia precisará ser pago”, diz Fernando de Holanda Barbosa, pesquisador do Ibre.
Pelo foco na população vulnerável, o programa tem alto subsídio do governo. No caso da contribuição ao INSS, ela é limitada a 5% do salário mínimo para o MEI (R$ 70,60 em 2024). Já o trabalhador com carteira assinada do salário mínimo para a Previdência contribui com até 34% salário, divididos entre empregado (7,5% a 14%) e patrão (20%).
A grande diferença entre as contribuições contribui para pressionar a Previdência. Estimativa do especialista em previdência Rogério Nagamine Constanzi prevê que o déficit atuarial dos MEIs pode atingir R$ 1,4 trilhão no futuro. Em suas contas, os MEIs representam cerca de 10% dos contribuintes do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), mas na arrecadação essa participação é de apenas 1%.
“Vale lembrar que uma contribuição em torno de 30% é justamente a que faz a Previdência atuarialmente sustentável ao longo do tempo. Se houvesse uma migração total para o MEI, ele não seria solvente”, ressalta Barbosa, do Ibre. “Por ser uma modalidade relativamente nova, ela ainda não teve efeito sobre o pagamento de aposentadorias. Mas este custo vai chegar.”
O estudo de Mirelle também emulou quatro cenários contrafactuais com medidas para reduzir a pejotização: eliminar o MEI, eliminar a pejotização, elevar a fiscalização e reduzir os encargos trabalhistas. Todos eles resultam em um acréscimo do bem-estar — aqui entendido como a soma de lucros, salários e impostos pagos. Destes, no entanto, o último, uma redução de 20% da tributação sobre a folha de pagamento, obteve os melhores resultados. A medida, no entanto, promove uma queda apenas marginal do número total de MEIs na economia, de 61,5% para 60,9%. E, embora o número de pejotizados no mercado de trabalho caia de 33% para 32,4%, sua proporção dentro do universo de MEIs sobe de 53% para 54%.
Diferentemente dos demais cenários, também há um aumento do salário tanto dos trabalhadores CLT (2,4%) quanto dos pejotizados (4,9%).
“À medida que se reduz o imposto sobre a folha de pagamentos, isso eleva um aumento na demanda por esses trabalhadores e, assim, seus salários. Com isso, parte dos MEIs que antes eram empreendedores ou pejotizados passa ao trabalho com carteira”, explica Mirelli. “Com menos MEIs pejotizados na economia, o salário ofertado a eles aumenta e isso equilibra a proporção de MEIs escolhendo ser pejotizado.”
Para a pesquisadora, os resultados também deixam a pergunta sobre se o regime pejotizado não representa uma nova estrutura no mercado de trabalho, ainda que ilegal. “A pejotização é ruim no sentido de direitos trabalhistas mas, talvez ainda mais depois da pandemia, as pessoas podem estar mais dispostas a aceitar esse tipo de arranjo, que traz mais liberdade em termos de jornada de trabalho, menor burocracia na relação com a empresa.”