O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), deve atender um antigo anseio da Polícia Militar e liberar a tropa para elaborar os chamados Termos Circunstanciados de Ocorrência (TCO), destinados a registrar crimes de menor poder ofensivo.
A corporação já prepara a tropa para assumir esse novo trabalho, segundo noticiou o site Metrópoles. A Secretaria da Segurança Pública confirma à Folha que dará aval para isso.
Embora a liberação esteja amparada em entendimento do STF (Supremo Tribunal Federal) e já exista em vários estados brasileiros, a medida é vista como uma afronta e nova derrota à Polícia Civil.
A corporação vem sendo colocada de lado nas grandes operações de combate ao crime organizado realizadas pelo Ministério Público que, no lugar dela, tem acionado justamente a Polícia Militar, com quem os agentes civis historicamente brigam por destaque na segurança pública.
O secretário da Segurança, Guilherme Derrite, que deveria mediar essa crise, deu claros sinais de ter tomado lado nessa disputa ao afirmar que a PM vai assumir o protagonismo no combate ao crime organizado ao lado da Promotoria.
A própria indicação de Derrite, capitão da reserva da PM, para o comando da Segurança quebrou uma tradição de ao menos 40 anos de o governador nunca escolher um secretário ligado a uma das duas corporações, para não aparentar predileção a uma delas.
Nessas quatro décadas, o nome mais identificado com a PM e nomeado como secretário da Segurança foi o procurador Antônio Ferreira Pinto. Embora tenha sido um oficial da PM paulista, ele construiu sua carreira profissional no Ministério Público de São Paulo.
Foi ele, curiosamente, quem defendeu a Polícia Civil nesse mesmo tema. Ferreira Pinto proibiu a PM de elaborar os Termos Circunstanciados em 2009, na primeira tentativa da corporação de assumir essa fatia dos casos criminais que, desde 1995 (data de criação da lei), pertence à Polícia Civil.
Conforme resolução da época, os testes realizados demonstraram uma piora “no relacionamento entre as instituições policiais”, que tinha sido “afetado de forma sensível, com crescentes atritos, advindo posturas que prejudicam o bom andamento do serviço policial, em detrimento do interesse público”.
Na visão do então secretário, conforme explicou à época, um soldado, cabo ou sargento não sabia tipificar uma ilicitude para assumir tal função.
Para a liberar a PM para elaborar o TCO, Derrite vai ter que derrubar a resolução publicada por Ferreira Pinto.
Conforme documento obtido pela Folha, os treinamentos teóricos da PM começaram na última segunda (15) e vão até de julho.
A diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, disse que a PM assumir a elaboração dos termos circunstanciados é positivo porque a corporação perde muito tempo nas delegacias apresentado ocorrências, e isso tenderia a melhorar.
“Lavrar um TCO é fazer um boletim de ocorrência de um crime de menor potencial ofensivo”, explica.
A polêmica desse assunto, pondera, está na forma como as duas instituições encaram a mudança. Segundo ela, a PM vê o termo circunstanciado como a porta para o ciclo completo de polícia, como se ela pudesse investigar, enquanto a Polícia Civil se sente perdendo uma prerrogativa.
“Num contexto de enfraquecimento da Polícia Civil, num momento em que a PM está com superpoderes, recebendo cursos para fazer investigação, investigar crime organizado, eu acho muito ruim”, afirma.
Pelo ciclo completo de polícia, a PM passaria a ser responsável pela investigação de delitos com punição de até dois anos de prisão e poderia enviar os casos diretamente ao Ministério Público. A Polícia Civil atuaria em crimes mais complexos, nos termos que a Polícia Federal faz nacionalmente.
“Não dá para uma instituição usurpar a função da outra. Quantas chamadas do telefone 190 deixam de ser atendidas, atualmente? Milhares. A população liga no 190, não vai viatura, não vai ninguém. E vão colocar a PM para fazer TCs?”, questiona a delegada Jacqueline Valadares, presidente do Sindpesp (Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo).
Segundo ela, a Polícia Civil tem hoje um déficit de 17.324 profissionais.
A Secretaria da Segurança afirma que a elaboração do TCO pela Polícia Militar “é prevista pela Lei federal 9.099/95 e referendada por recentes decisões do Supremo Tribunal Federal”.
“Segundo entendimento da própria Suprema Corte, a lavratura do TCO não é atribuição exclusiva da polícia judiciária e não é um ato investigativo. Trata-se de um procedimento administrativo para o registro de crimes de menor potencial ofensivo –com pena máxima de até dois anos ou contravenções penais—, que são apresentados diretamente aos Juizado Especial Criminal (Jecrim)”, diz nota.
A pasta diz que a medida está em em funcionamento em 17 estados brasileiros e tem como objetivo “dar mais celeridade ao atendimento ao cidadão, otimizar recursos e garantir condições à Polícia Civil para o fortalecimento das investigações de crimes de maior potencial ofensivo”.
Sobre dar protagonismo à PM no combate ao crime organizado, a pasta diz que Derrite se referiu “à atuação da pasta como um todo, não apenas da Polícia Militar”.
“O secretário sempre confiou nas Polícias Civil, Militar e Técnico-Científica e, diante disso, promoveu a integração e o trabalho conjunto, como aconteceu em ações na Baixada Santista e em outras operações pelo estado de São Paulo”, diz nota.
Quando a operação do Ministério Público em parceria com a PM, a Segurança diz que isso já ocorreu outras vezes. “Isso em nada inviabiliza o trabalho da Polícia Civil, que continua atuante no combate ao crime organizado por meio de investigações e inquéritos em andamento por todo o estado paulista.”