O consumo excessivo de sal é amplamente reconhecido como um dos principais perigos para a saúde cardiovascular, já que está intimamente ligado ao desenvolvimento de hipertensão (pressão alta) — um quadro que é fator de risco para a ocorrência de infartos e derrames. No entanto, vídeos de médicos recomendando a ingestão diária de sal diluído em água, sem qualquer respaldo em evidências científicas, têm se tornado cada vez mais frequentes nas redes sociais, gerando apreensão entre especialistas e entidades médicas.
Esse tipo de desinformação é especialmente preocupante no Brasil, onde quase 28% da população já é hipertensa, segundo dados levantados pelo Instituto Nacional de Cardiologia.
Por meio dos vídeos com milhares de visualizações, os defensores dessa prática têm sugerido o consumo diário de uma colher de café de sal integral — seja ele rosa, grosso, do Himalaia ou qualquer outro que tenha “não refinado” no rótulo — diluído em um litro de água. O argumento utilizado por eles é de que o sal de cozinha comum perde nutrientes no processo de refinamento, ao contrário dos produtos integrais, que teriam uma composição mais natural, preservando elementos como magnésio, cálcio e potássio — isso supostamente auxiliaria no controle da pressão arterial.
Esse é o argumento usado, por exemplo, por um médico com 1,2 milhão de seguidores no Instagram, e registrado no Conselho Regional de Medicina (CRM) de Rondônia. Ao interagir com uma seguidora que diz ter 55 anos e ser hipertensa, o profissional confirma que ela pode usar a solução de água e sal. “Muitas pessoas acham o sal é vilão da pressão, mas, na verdade, o que faz a pressão subir é estar acima do peso, com deficiência de magnésio, com hipotireoidismo, sono desregulado. O sal é o menor dos fatores. Então, sim, você pode utilizar”, responde o médico, que não possui especialidade registrada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), à seguidora.
Em outro vídeo, com mais de 250 mil visualizações, um segundo médico, também com mais de um milhão de seguidores, desafia a crença de que o uso de sal integral possa causar hipertensão. Segundo ele, o problema seria o oposto: o baixo consumo de sódio (mineral presente no sal) aumentaria a retenção de líquido, fazendo a pressão subir.
Esse profissional, que está sob investigação por produzir vídeos nos quais desencoraja mulheres a realizarem exames de mamografia, possui registros para atuar em São Paulo e Minas Gerais, mas também não conta com especialidade médica reconhecida pelo CFM. Além disso, ele administra, junto a outro influenciador, uma empresa de suplementos alimentares que oferece sua própria linha de sais integrais. Esses produtos, cuja composição nutricional não é divulgada, são vendidos em kits de sachês por cerca de 60 reais.
Os riscos da desinformação
O cardiologista Weimar Sebba, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), esclarece que não há embasamento científico que justifique o consumo de sal integral, sobretudo entre pessoas com pressão alta.
Ainda que esses produtos de fato preservem mais micronutrientes do que o sal refinado, isso não faz diferença em termos de saúde. “Independentemente da origem, o que realmente importa para o coração é o sódio. E todos os tipos de sal contêm esse mineral”, explica o cardiologista.
Na prática, quando há excesso de sódio no organismo, os rins retêm mais água para diluí-lo no sangue, o que aumenta o volume sanguíneo. Para lidar com esse volume extra, o coração precisa exercer mais pressão para bombear o sangue, o que leva à subida da pressão arterial — quando as taxas ficam frequentemente altas, temos a hipertensão. Com o tempo, esse processo sobrecarrega o sistema cardiovascular, podendo causar danos aos vasos sanguíneos e aumentando o risco de doenças como acidente vascular cerebral (AVC), insuficiência cardíaca e problemas renais.
Vale ressaltar que a hipertensão é uma condição multifatorial. Aspectos como predisposição genética, idade e etnia estão envolvidos na origem da doença, assim como hábitos de vida modificáveis, a exemplo de tabagismo e consumo excessivo de álcool. Entre esses comportamentos considerados passíveis de mudança, o uso exagerado de sal é considerado um dos mais importantes, como apontado em documento da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp).
Em 2022, motivados pela crescente popularidade do sal do Himalaia, pesquisadores brasileiros chegaram a investigar os supostos benefícios desse produto contra a hipertensão. No estudo, 18 voluntários foram divididos aleatoriamente em dois grupos: um consumiu o sal menos refinado e o outro, sal de cozinha normal. Antes e depois da intervenção, que durou dois meses, os autores mediram a pressão e analisaram a urina dos participantes. O resultado? Nenhuma diferença entre os dois grupos.
É importante lembrar que a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda um consumo máximo de 5 gramas de sal por dia, o equivalente a 2 gramas de sódio. “Para ter ideia, essa quantidade corresponde a uma tampinha de caneta BIC, mas, no Brasil, o consumo diário é, em média, três vezes maior do que isso”, alerta Sebba. “Esse excesso é o verdadeiro vilão, pois sobrecarrega os rins, aumenta o risco de doenças cardiovasculares, contribui para inflamações, aumenta a frequência cardíaca e até eleva o risco de certos tipos de câncer”, complementa.
Nesse sentido, a nutricionista Valéria Machado, coordenadora do Departamento de Nutrição da Socesp, ressalta que a maioria dos alimentos que consumimos diariamente — tanto nas refeições principais, como almoço e jantar, quanto em produtos industrializados e ultraprocessados, como salgadinhos e congelados — já concentram uma quantidade alta de sódio. “Ou seja, se colocarmos nosso consumo total de sal ao longo do dia na ponta do lápis, essa recomendação de diluir sal integral em água se torna um convite ao exagero”, afirma Valéria.
Do ponto de vista de composição nutricional, a especialista reconhece que o “sal integral” mantém alguns minerais. “Mas a diferença é tão mínima que não justifica o consumo diário”, explica. Ela alerta também para o marketing envolvido nesse tipo de indicação. “Muitos desses profissionais têm marcas próprias e vendem o produto, o que deveria levantar suspeitas sobre as verdadeiras motivações dessas recomendações”, observa. “Essas ‘novidades’ só geram ruído e desinformação para uma população já confusa com tantas tendências alimentares questionáveis”, completa.
Sebba observa outra postura comum nos vídeos divulgados: a utilização de uma linguagem que busca ser técnica, com o intuito de conferir credibilidade ao discurso, mas que carece de clareza e lógica. Nesse sentido, ele ressalta a necessidade de uma postura crítica entre aqueles que estão do outro lado da tela. “O compromisso de quem está falando deve ser com a ciência, mas as pessoas que assistem precisam ser mais críticas sobre o que consomem em termos de informação. Na dúvida, devem buscar orientação de um profissional de saúde confiável, em vez de seguirem tendências sem questionar”, opina o cardiologista.
É válido lembrar que a hipertensão resultou em 18,7 óbitos por 100 mil brasileiros em 2021, um aumento de 72% em relação a 2011. “A hipertensão é uma doença grave, mas as pessoas tendem a não a levar a sério, pois geralmente não causa sintomas”, afirma Sebba. Muitas vezes, o primeiro sintoma da hipertensão já é um infarto ou AVC. “Justamente por isso, discursos como esses nas redes sociais são perigosos. As pessoas estão vulneráveis a um quadro assintomático e muito sério”, complementa.
Mais promessas
Além do controle da pressão arterial, os médicos influenciadores recomendam o sal integral para melhorar a hidratação, favorecer o sono, aumentar a energia, fortalecer o sistema imunológico e reduzir o estresse. E se o consumo for feito em jejum ou durante os treinos de academia, melhor ainda, defendem eles.
Tudo isso, segundo Valéria, também é muito controverso. Ela explica que consumir essa mistura em jejum pode levar a uma elevação rápida e desnecessária dos níveis de sódio e pressão arterial, impactando diretamente o sistema cardiovascular, que ainda está se ajustando ao início do dia.
Para quem vai à academia em seguida, o risco é maior ainda. “A prática de exercícios já eleva naturalmente a pressão arterial e a frequência cardíaca. Com a adição de uma dose extra de sódio antes da atividade física, há uma sobrecarga cardiovascular que pode levar a picos hipertensivos. Fora isso, esse consumo em jejum também pode causar irritação no estômago, causando até problemas como gastrite”, destaca Valéria.
Esse tipo de discurso pseudocientífico é sustentado por uma variedade de profissionais, incluindo biólogos, nutricionistas, homeopatas e até mesmo professores de filosofia. Todos eles, diga-se de passagem, possuem influência significativa nas redes sociais e são frequentemente convidados para participar de entrevistas e podcasts.
“Hoje em dia, infelizmente, a credibilidade de um profissional está muito associada ao número de seguidores. As pessoas tendem a confiar em quem tem mais audiência, mas esses perfis nem sempre divulgam informações adequadas ou seguras — muitas vezes, estão apenas promovendo desinformação”, observa Valéria. “Além disso, essas recomendações ignoram completamente a saúde individual. São orientações amplas e descuidadas que não levam em consideração particularidades como problemas cardíacos, renais ou outras condições específicas que as pessoas podem ter. Isso diz muito sobre a postura desses profissionais”, acrescenta a nutricionista.
Investigação dos casos
A reportagem solicitou um posicionamento do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), uma vez que um dos médicos envolvidos está registrado na instituição. Em resposta, o Cremesp informou que realiza monitoramento e busca ativa nas redes sociais através da Comissão de Divulgação de Assuntos Médicos (CODAME). Essa comissão atua para combater irregularidades como a falta de identificação com CRM ou RQE, quebra de sigilo, sensacionalismo e promessas de resultados.
O Cremesp também confirmou que está investigando o caso mencionado, mas ressaltou que as investigações estão tramitando sob sigilo, conforme determinado por lei. Além disso, um pedido de posicionamento foi feito ao Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRMMG) e ao Conselho Regional de Medicina de Rondônia (Cremero), mas, até o momento, não houve retorno.