Quando você se machuca, o seu corpo age para estancar o sangramento e impedir que você tenha uma hemorragia. No entanto, para 14 mil pessoas no Brasil, qualquer ferimento pode ser um risco grave à saúde porque o corpo não tem essa capacidade. Eles têm hemofilia.
Nesta terça-feira (17) é Dia Mundial da Hemofilia e o g1 conversou com especialistas no cuidado de pacientes e com quem convive com a doença.
A coagulação é essencial para a proteção da vida. Isso porque ela age em traumas, quando por exemplo, nos cortamos, impedindo que o sangramento se prolongue até a morte. Mas também porque ela estanca as microlesões do dia a dia.
Um dos casos ocorre mesmo durante as caminhadas. Enquanto você anda, as articulações se movimentam e podem causar pequenas lesões que chegam a sangrar, mas o corpo age automaticamente e, sem que você perceba, o sangramento é estancado.
No caso de hemofílicos, isso não acontece e essas lesões causam sangramentos constantes que podem, inclusive, debilitar as articulações.
Para entender melhor, é preciso compreender como a coagulação acontece:
Na hemofilia, esse processo é interrompido e a coagulação não acontece. A hematologista do hospital Sírio Libanês, Mariana Arruda, explica que a coagulação acontece em cascata, na qual um fator genético é dependente do outro. Nos hemofílicos, essa cascata é interrompida por dois tipos específicos de proteína, uma chamada de fator de coagulação VIII e outra de fator de coagulação IX.
A hemofilia é resultado de uma mutação nos genes ligados à coagulação. Esses genes estão no cromossomo X, que é o feminino, e por isso a doença é sempre passada de mãe para filho e é mais comum em homens que em mulheres.
👉 Ela é dividida em dois tipos: a hemofilia A e a hemofilia B. A classificação está relacionada ao tipo de proteína que a pessoa não consegue produzir. O tipo A é o mais comum entre os pacientes, responsável por 80% dos casos.
Geralmente, o diagnóstico acontece já na primeira infância. Isso porque os pacientes são sensíveis e qualquer batida pode gerar inchaços e hematomas grandes, que acabam chamando a atenção e levando à investigação. A doença é confirmada por exames de sangue que detectam a dificuldade na coagulação.
Quem tem a doença corre o risco com cortes, traumas (batidas) e quedas. Qualquer ferimento interno, por menor que seja, pode levar a um sangramento de alto volume – o que coloca a vida em risco.
Além disso, há ainda um risco maior, que são o que os médicos chamam de sangramentos espontâneos.
👉 Eles acontecem como resultado das lesões do dia a dia. Enquanto nos movimentamos, nosso corpo se lesiona por dentro e estanca automaticamente – processo que não acontece com os hemofílicos. Com isso, esse tipo de sangramento pode comprometer a articulação, levando até à deficiência motora.
Com a deficiência, o paciente com a doença precisa receber o fator de coagulação VIII para que o corpo consiga continuar o processo de coágulo.
👉 Até os anos 90, isso era feito por transfusão de sangue – o paciente recebia uma bolsa com o sangue de outra pessoa que não tinha deficiência do fator. Com isso, há inúmeros casos de pacientes que contraíram doenças como HIV e Hepatite.
🩸 A aplicação precisa ser feita de três a sete vezes por semana, dependendo da gravidade do paciente, de forma venosa. Segundo a especialista, com isso, a pessoa consegue levar uma vida normal, apesar do cuidado com as lesões, quedas e ferimentos.
🩸 No entanto, há pacientes que além de não terem o fator genético que atua na coagulação, têm uma resposta imune a ele. Ou seja, ao receberem o medicamento com a reposição, o sistema imunológico começa a atacar. Nesses casos eles são dependentes de um remédio de alto custo, que é um anticorpo monoclonal.
O medicamento está disponível no SUS para quem tem a resposta imune, mas há demanda de pacientes para que ele seja disponível a qualquer pessoa com a doença. Isso porque a aplicação é subcutânea, o que facilita para o paciente, além de precisar de menos inserções – apenas uma por semana.
Por ser uma doença rara, o tratamento nem sempre é de fácil acesso, apesar de disponível no SUS, explica a Associação Brasileira de Pessoas com Hemofilia (Abraphem).
Mariana Battazza viveu na pele a busca por ajuda para evitar que a doença se agravasse em seu filho e que tivesse sequelas mais graves.
Pedro foi adotado e os pais já sabiam que ele tinha a doença. Mariana conta que, na infância do filho, hoje com 22 anos, não havia medicação profilática para a doença – que evita que os sangramentos internos se agravem – apenas o socorro em casos de ferimentos. Ou seja, o risco com qualquer lesão era grave.
“Eu tinha pavor de qualquer queda porque poderia ter uma hemorragia interna. Um ferimento que podia terminar em hemorragia. Todo mundo na família, na escola, sabia como aplicar a medicação em caso de emergência. Tinha uma dose em todo lugar que ele ia. Foi uma luta para não privá-lo da infância”, conta.
Mariana conta que muitas vezes os pais são desacreditados porque em qualquer queda, pedem uma bateria de exames para rastrear sangramentos.
Foi então que decidiu estudar sobre o assunto, ir a congressos, se conectar a pacientes pelo mundo e passou a presidir a associação, que hoje luta por acesso à tratamento. Ela explica que, além dos medicamentos, os pacientes precisam de acompanhamento médico constante, fisioterapia para evitar que os sangramentos articulares evoluam para lesões graves, mas isso não é realidade em todo o país.
Outro ponto é a luta para que o anticorpo monoclonal, que é oferecido a pacientes com a doença e resposta imunológica ao fator seja estendido a todos com o tipo A da doença. “É um tratamento mais atual, que pode trazer mais conforto para os pacientes e que está disponível para todos com o tipo A em muitos países”, explica.
Em nota ao g1, o Ministério da Saúde explicou que, no final de 2023, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) ampliou o público que pode receber o emicizumabe. O emicizumabe é um anticorpo monoclonal apresentado como medicação injetável via subcutânea que imita a função do fator de coagulação VIII.
De acordo com o governo, o medicamento inicialmente destinava-se apenas uma subpopulação específica de pacientes com hemofilia que desenvolveram inibidores, ou seja, anticorpos que neutralizam a eficácia dos medicamentos tradicionais administrados.
O emicizumabe não era direcionado para pacientes que tinha sucesso com tratamentos complementares que reduziam essa “neutralização”, ou seja, a imunotolerância. Recentemente, porém, sua utilização foi ampliada para abranger todos os pacientes com hemofilia que desenvolvem inibidores.