O governo Lula (PT) planejava pedidos públicos de desculpas a vítimas da ditadura e outras ações para marcar a efeméride dos 60 anos do golpe militar.
Os atos simbólicos foram vetados pelo petista, numa tentativa de evitar confrontos com os militares diante do avanço das investigações sobre articulação golpista envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e integrantes da caserna.
Desde o ano passado, o Ministério de Direitos Humanos vinha planejando ações interministeriais e pretendia lançar uma campanha para a data. O slogan da ação chegou a ser registrado em texto interno da pasta: “60 anos do golpe 1964-2024 – sem memória não há futuro”.
A Folha teve acesso a dois documentos da campanha elaborados no fim de 2023 e recebidos por cerca de dez ministérios. Em um deles, intitulado “chamado para uma campanha interministerial e intersetorial”, o ministro da pasta, Silvio Almeida, pedia uma ação coordenada entre governo e sociedade civil para lembrar das seis décadas do golpe.
No outro, sem a assinatura do ministro, a pasta apontava para uma série de ações já tomadas pelo governo para promover reparações sobre a ditadura militar e convidava os ministérios a planejarem novas atitudes, inclusive pedidos públicos de desculpas.
“Frente à efeméride de 60 anos do golpe que se avizinha e considerando todo o exposto bem como a competência deste MDHC —especialmente por meio de sua Assessoria Especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade—, convidamos os Ministérios a formularem atos reparatórios, de reconhecimento e/ou desculpas públicas a setores da população atingidos pelas violências da ditadura militar. A ação concatenada comporá o calendário de atos em memória a tal período”, diz o texto.
Procurado, o ministério comandado por Almeida não quis se manifestar.
Os documentos reforçam a importância de desculpas públicas como reparação para as violações de direitos cometidas pelo Estado brasileiro nos 20 anos de ditadura militar.
“A memória não diz respeito apenas ao passado; ela diz respeito sobretudo ao futuro. Essa percepção da memória e verdade nos convoca a apresentar projetos de futuro, para a não-repetição sistemática desses feitos”, diz.
O texto enviado aos ministérios faz um apanhado histórico da reparação das últimas décadas, e destaca a atuação da Comissão da Anistia sob uma perspectiva integral, quando instituiu tradição de pedidos simbólicos de desculpas, em nome do Estado brasileiro, a pessoas consideradas vítimas de perseguição política.
Esse tipo de ato ganhou notoriedade durante o governo de Dilma Rousseff (PT), quando Paulo Abrão presidia a Comissão da Anistia.
Em outro trecho, Almeida utiliza uma expressão do economista Celso Furtado para falar que o país foi interrompido diversas vezes na sua história. Ele cita 1964 e 2016 –ano do impeachment de Dilma Rousseff.
Como mostrou a Folha, nem todos os aliados de Lula concordam com a decisão do presidente de ignorar a data. Durante comemoração do aniversário do ex-ministro José Dirceu, o tema foi fonte de mal-estar entre o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, e o ex-presidente do PT Rui Falcão (SP).
Falcão disse ao titular da pasta discordar do mandatário, afirmando que “a gente não pode apagar a memória”. Do contrário, prosseguiu o deputado, a história se repetirá, como nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023.
Em resposta, Múcio afirmou que sua tarefa —a pedido de Lula— era evitar manifestações de militares, que costumam celebrar o golpe. “Não há o que se comemorar. A gente precisa investir em pacificação”, repetiu o ministro.
Lula também desencorajou manifestações das Forças Armadas celebrando o golpe —como ocorreu, por exemplo, durante o governo Bolsonaro, saudosista da ditadura.
De acordo com pessoas próximas a Almeida, o evento organizado pela pasta ocorreria no Museu da República, em Brasília, e estava previsto um discurso do ministro. A cerimônia exaltaria a luta de militantes e perseguidos pelo regime de exceção comandado pelos militares.
Auxiliares do ministros dizem que agendas paralelas à data do golpe, como reuniões ordinárias da Comissão de Anistia para julgamento de processos, devem ser mantidas, como a análise da ação coletiva do povo indígena Krenak, em 2 de abril.
O presidente, no mês passado, disse que não quer “remoer o passado”, a respeito do golpe militar de 1964. A declaração foi mal recebida por entidades de direitos humanos e da sociedade civil.
Em nota, as mais de 150 entidades da Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia classificaram a fala como “equivocada” e defenderam que tratar do golpe “não é remoer o passado, é discutir o futuro”.
“Repudiar veementemente o golpe de 1964 é uma forma de reafirmar o compromisso de punir os golpes também do presente e eventuais tentativas futuras”, dizia o texto.
Na carta, as entidades defendem ainda ser impossível falar dos ataques golpistas às sedes dos três Poderes em 8 de janeiro de 2023 sem falar do golpe militar de 1964.
O regime militar (1964-1985) teve uma estrutura dedicada a tortura, mortes e desaparecimento.
Os números da repressão são pouco precisos, uma vez que a ditadura nunca reconheceu esses episódios. Auditorias da Justiça Militar receberam 6.000 denúncias de tortura. Estimativas feitas depois apontam para 20 mil casos.
Presos relataram terem sido pendurados em paus de arara, submetidos a choques elétricos, estrangulamento, tentativas de afogamento, golpes com palmatória, socos, pontapés e outras agressões. Em alguns casos, a sessão de tortura levava à morte.
Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade listou 191 mortos e o desaparecimento de 210 pessoas. Outros 33 desaparecidos tiveram seus corpos localizados posteriormente, num total de 434 pessoas.