ENVIADA ESPECIAL A BRASÍLIA* – A forma como pensamos, sentimos e reagimos a diversas situações pode ter impacto direto em quadros de saúde. À primeira vista, essa ideia pode parecer distante dos critérios científicos tão intrínsecos à Medicina. No entanto, um número crescente de estudos vem mostrando que a espiritualidade — um conceito que vai muito além da religião — tem influência direta no bem-estar, podendo auxiliar na prevenção, na melhora dos quadros clínicos e na receptividade aos tratamentos.
Conforme explica o cardiologista e diretor do Centro Internacional de Pesquisa do Hospital Alemão Oswaldo Cruz (SP), Álvaro Avezum, não existe um conceito único sobre o que é a espiritualidade. Mas ele gosta de citar aquele utilizado pela médica paliativista norte-americana Christina Puchalski, considerada uma líder internacional no movimento para integrar esse conceito nos cuidados de saúde. De acordo com Christina, a espiritualidade é um aspecto intrínseco da humanidade, algo que todos possuem, relacionado à busca por significado, propósito e transcendência da existência.
Na opinião de Avezum, essa definição ajuda a explicar algo que beira o intangível. Contudo, não traz as especificações necessárias para tornar o subjetivo em algo palpável, por meio de dados e validação em pesquisa científica. Isso motivou o Departamento de Espiritualidade da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) a criar uma definição própria – não para invalidar outras, mas para facilitar a produção de estudos, especialmente no Brasil.
“Nós definimos a espiritualidade como um conjunto de valores morais, mentais e emocionais que norteiam pensamentos, comportamentos e atitudes em quaisquer circunstâncias, seja no relacionamento consigo mesmo ou com os outros”, descreve Avezum. “Isso está relacionado a inúmeros sentimentos, como satisfação com a realidade vivida, gratidão, paciência, raiva, compaixão, otimismo. Tudo isso é mensurável. No caso da compaixão, por exemplo, há um questionário que avalia se o indivíduo é nada, pouco, médio ou bastante compassivo”, explica o cardiologista.
Para a geriatra e paliativista Luciana Louzada, diretora da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG-SP), incluir a espiritualidade na prática médica é uma evolução do cuidado, pois o profissional da saúde passa a considerar aspectos que vão além dos sintomas ou do problema de saúde em si, o que, de certa forma, proporciona maior aproximação e confiança entre médico e paciente. Ela destaca que a própria Organização Mundial de Saúde (OMS) já afirma que o conceito de saúde não é apenas a ausência de doença, mas um equilíbrio físico, psíquico, biossocial e espiritual.
“Durante a consulta, podemos perguntar ao paciente sobre o consumo de sal, o padrão de sono, a atividade física e o tabagismo, mas também questionar sobre a história daquela pessoa, suas relações sociais, o que é importante para ela e, dentro disso, se tem conexão com ‘algo maior’ que influencia sua forma de ver e se relacionar com o mundo, com os seus propósitos. Esse ‘algo maior’ não necessariamente é religião. Para alguns, pode ser a natureza ou até mesmo a arte”, compartilha Luciana, que menciona as ‘Blue Zones’ como um exemplo do impacto positivo que a espiritualidade pode ter na saúde.
“Quando estudamos as Blue Zones, regiões onde o envelhecimento biológico é mais lento que o cronológico, percebemos que essas pessoas (que moram nesses locais) têm uma saúde equivalente à de alguém 10 ou 20 anos mais jovem do que sua idade oficial. A grande maioria dessas comunidades compartilha algo em comum: elas são espiritualizadas, possuem um forte senso de propósito e significado de vida”, destaca Luciana.
Da prevenção ao tratamento
Segundo o cardiologista e especialista em Medicina e Saúde Humana, Cláudio das Virgens, levar em conta aspectos relacionados à vivência humana e à construção de um modelo de vida é essencial para reduzir os efeitos negativos de emoções intensas no organismo. Ele explica que sentimentos como raiva e ódio, por exemplo, podem desencadear reações fisiológicas significativas, incluindo respostas imunológicas e inflamatórias, que aumentam o risco de eventos clínicos sérios, como infartos.
“Quando conversamos com o paciente e identificamos lembranças ou situações que podem estar ligadas a uma resposta cardiovascular (negativa), temos a chance de melhorar nosso trabalho, complementando os tratamentos convencionais. Nesse caso, podemos sugerir, por exemplo, um acompanhamento psicológico, psiquiátrico ou até atividades físicas”, descreve o cardiologista.
Outro benefício observado pelos especialistas é a adesão ao tratamento, que é favorecida pela confiança estabelecida através do diálogo entre médico e paciente, além dos próprios aspectos da espiritualidade. “Ao oferecermos ao paciente a oportunidade de falar sobre seus propósitos de vida e sua fé em ‘algo maior’ — que não precisa ser necessariamente religioso — criamos um espaço para que ele se reconheça como ser humano. Isso o ajuda a compreender que ele tem um papel ativo nos bons resultados do seu tratamento”, ressalta das Virgens.
Em situações mais específicas, como o luto, essa abordagem pode ser ainda mais significativa, segundo Luciana. “O luto não se limita à perda de alguém. Ele também pode envolver a demissão de um emprego, uma perda financeira ou até uma dificuldade de locomoção que o paciente não tinha, mas precisou se adaptar”, observa a geriatra. Trabalhando com a espiritualidade há alguns anos em sua prática clínica, ela afirma que tem observado que sentimentos como a resiliência, por exemplo, são importantes em momentos de perda.
Contudo, é importante entender que não cabe ao especialista forçar o desenvolvimento de determinados sentimentos em momentos difíceis, destaca a cardiologista Maria Emília Figueiredo Teixeira, membro do Departamento de Espiritualidade e Medicina Cardiovascular da SBC. “Não dá pra dizer: ‘Olha, se você não perdoar aquela pessoa, lidar com esse ressentimento, você não vai melhorar’. Isso pode até piorar aquele quadro”, destaca. “O objetivo deve ser criar um espaço seguro para que o paciente possa falar sobre os aspectos associados à espiritualidade, mas sem qualquer tipo de imposição. O médico também precisa ter a sensibilidade de compreender se há abertura para ter esse tipo de conversa”, orienta a cardiologista.
Das Virgens observa que a espiritualidade pode ser relevante para pacientes de qualquer idade ou condição. Contudo, esse aspecto ganha importância especial em casos que envolvem pacientes idosos, em cuidados paliativos ou aqueles enfrentando doenças complexas, como o câncer. “Muitas vezes, só refletimos sobre nossa qualidade de vida quando somos confrontados com a finitude”, observa o médico. “Nesses momentos, surgem questionamentos como: ‘Quais valores estão me guiando?’, ‘sou feliz no meu casamento?’, ‘como será a separação da minha família, dos meus bens, da vida que construí?’, ‘quem cuidará dos meus animais e plantas?’”.
Confrontar a finitude da vida, segundo o especialista, pode gerar terror noturno, ansiedade e um senso de urgência para viver plenamente. “Há uma frase de Sêneca (filósofo e escritor romano) assim: ‘Apressa-te a viver bem e pensa que cada dia é, por si só, uma vida’. O que ele quer dizer com isso? Que devemos levar uma vida com vida, com dignidade e respeito a quem somos”, interpreta das Virgens.
“Quando a espiritualidade se insere em nossa rotina — seja através da arte, da natureza, da religião ou da crença em algo maior —, ela pode ensinar a olhar a vida com mais carinho, ajudando-nos a compreender nossa finitude. Isso é essencial em momentos difíceis relacionados à saúde”, opina o médico, que também é presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia da Bahia.
Há evidências científicas?
Enquanto os especialistas percebem os benefícios da espiritualidade na prática médica, as pesquisas científicas sobre o tema começam a tomar forma. Em 2018, por exemplo, um estudo que acompanhou um público predominantemente feminino (91,2%) em um hospital público brasileiro evidenciou a conexão entre espiritualidade e uma maior capacidade de resiliência, além de menor risco de burnout (síndrome do esgotamento profissional). Enquanto isso, um trabalho realizado pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos, mostrou que jovens com maior grau de espiritualidade têm melhor saúde na vida adulta.
No Brasil, um estudo recente chamado “Feel” apontou que cultivar otimismo, perdão, gratidão e algum propósito de vida pode ajudar no controle da hipertensão. A pesquisa, que foi apresentada durante o Congresso Brasileiro de Cardiologia, realizado em setembro deste ano em Brasília, já havia sido exposta na Sessão Científica Anual do Colégio Americano de Cardiologia, em Washington, capital dos EUA, em abril.
No trabalho, os pesquisadores avaliaram 100 pessoas hipertensas, todas do ambulatório da Unidade de Hipertensão da Universidade Federal de Goiás (UFG). Elas foram divididas em dois grupos: experimental (51) e controle (49), sendo que ambos passaram por avaliações relacionadas a hábitos de vida, uso de medicamentos e pressão arterial.
Durante 12 semanas, o grupo considerado experimental recebeu mensagens diárias curtas e vídeos por WhatsApp para cultivar a espiritualidade, sem vínculo religioso. Também foram incentivados a escrever mensagens e refletir sobre os quatro sentimentos considerados pela pesquisa. Como resultado, o estudo revelou uma redução mais acentuada nos níveis de pressão arterial nessa turma. Além disso, a dilatação fluxo-mediada, que avalia a função da camada interna dos vasos sanguíneos, também mostrou uma melhora significativa nesses participantes em relação àqueles do grupo controle.
“Teoricamente, esse é o melhor parâmetro para avaliar intervenções de curto prazo e não medicamentosas. O resultado foi bom, com uma redução significativa da pressão arterial que, se mantida a longo prazo, pode evitar infartos e derrames”, destaca a cardiologista Maria Emília Figueiredo Teixeira, principal autora do estudo.
Apesar dos resultados positivos, ela ressalta que esse é um estudo inicial e pequeno. Ela também menciona que uma nova pesquisa, com um número maior de participantes e abrangência nacional, está sendo planejada. “Trata-se de um estudo piloto, que não comprova definitivamente os resultados, mas reforça a hipótese. Nós reconhecemos os benefícios da espiritualidade. Mas, para comprovar isso de fato, precisamos de investigações mais robustas. O Feel já começa a lançar luz sobre a viabilidade desse tipo de pesquisa”, observa a pesquisadora.
Espiritualidade é religião?
Ao se deparar com o conceito de espiritualidade, é comum a pergunta: “E a religião?”. No entanto, Avezum destaca a necessidade de desconstruirmos essa ideia. Isso porque não é necessário seguir alguma crença religiosa para que sentimentos como perdão ou compaixão estejam conectados a nossos valores, autoconsciência e transformação pessoal. “Quando determinamos a religião como critério de espiritualidade, estamos excluindo aqueles que não possuem uma crença religiosa”, explica Avezum. “Nós podemos buscar espiritualidade por meio da religião ou da crença em ‘algo maior’? Podemos. E sem? Também podemos”, completa.
Apesar disso, a psicóloga do A.C.Camargo Cancer Center, Mariana Britto, lembra que vivemos em um país onde uma grande parcela da população possui algum tipo de religião, o que influencia diretamente na forma como os pacientes encaram a espiritualidade e suas várias camadas. “Se o médico deseja abordar a espiritualidade na prática médica, é essencial buscar conhecimento e ter um olhar respeitoso para a diversidade religiosa. Afinal, isso também molda percepções sobre perdão, relações interpessoais, culpa e por aí vai”.
Ela ressalta que, muitas vezes — e especialmente no caso dos pacientes oncológicos —, o sofrimento vai além da dor física, que, em geral, pode ser bem gerida pela equipe médica. “Estamos lidando com uma dor total, que envolve aspectos emocionais, psicológicos, sociais e espirituais. Por exemplo, uma testemunha de Jeová que aceita uma transfusão de sangue pode viver o temor de não ser aceita após a morte ou de desagradar sua família. Para essa pessoa, isso é algo muito sério”, explica. “O fato de o médico escutar, de dizer que vai tentar alternativas, conversar com a equipe, mesmo que a transfusão seja inevitável, já traz alívio. O paciente percebe que sua dor, que vai além da doença, foi reconhecida. E isso os ajuda a enfrentar o tratamento com mais confiança”.
Pontos de cuidado: projeções e julgamentos
A psicóloga do A.C. Camargo Cancer Center também alerta para os cuidados que precisam estar envolvidos na associação entre espiritualidade e prática médica.
Para ela, é necessário respeitar as demandas que surgem diretamente dos pacientes, em vez de impor questões como perdão ou dilemas ligados à espiritualidade por iniciativa do profissional. “Se o paciente não menciona a falta de perdão como uma fonte de sofrimento e está lidando bem com o tratamento, como devemos abordar isso? Será que é uma vontade minha trabalhar essa questão ou realmente algo que o paciente está vivenciando?”, questiona.
Ela traz como exemplo o caso de uma paciente que parecia enfrentar o tratamento com tranquilidade, enquanto sua médica se preocupava com o que aconteceria após o término desse processo. “Essa preocupação vem da especialista, que acha estranho a paciente lidar tão bem com tudo, ou a paciente pode estar escondendo algo?”, pondera.
Segundo a psicóloga, é importante que médicos e a equipe multidisciplinar ouçam atentamente os pacientes, evitando projetar suas próprias inseguranças sobre eles. “Nem todo paciente, mesmo enfrentando uma doença grave, precisa, por exemplo, de acompanhamento psicológico se isso não for sua principal demanda de sofrimento”, ressalta Mariana.
Ela também destaca que as necessidades dos pacientes podem variar. “Às vezes, o sofrimento está mais relacionado a questões sociais do que à espiritualidade, como o medo de quem cuidará dos filhos após sua morte. Nesses casos, o papel do assistente social pode ser ainda mais crucial do que o de um psicólogo. A espiritualidade pode se entrelaçar com essas preocupações? Com certeza. Por exemplo, atendo muitos líderes religiosos que estão ansiosos sobre a continuidade de suas funções em suas comunidades. Quando oferecemos espaço para que o paciente fale dessas questões, isso pode ter um impacto direto em seu tratamento físico”, opina.
Nesse mesmo sentido, das Virgens complementa a importância de os médicos se desfazerem de seus julgamentos. “Um profissional de saúde que se alinha a esse movimento – que, vale lembrar, é um movimento da humanidade – tratará seus pacientes com mais respeito e dignidade, incluindo não julgar pela cor, classe social ou religião”, afirma.
Mariana, por sua vez, frisa que essa sensibilidade deve estar presente até no consultório. “É preciso ter cuidado com o terço que se usa no pescoço ou com as imagens religiosas no ambiente de trabalho. Embora não esteja dizendo que isso seja errado, é válido lembrar que estamos em instituições onde o paciente busca cuidado, e esse cuidado envolve deixá-lo confortável sobre suas particularidades, sejam elas religiosas ou não”, conclui.
*A repórter viajou a convite da Sociedade Brasileira de Cardiologia