A Agência Nacional de Segurança de Medicamentos (ANSM) francesa anunciou que tratamentos à base de cannabis medicinal contra a dor estarão disponíveis no país em 2025. Esta divulgação surge pouco antes do fim de uma experiência de três anos, em 275 unidades de saúde por toda a França, que administrou fármacos à base de cannabis a 3.035 pacientes.
“A disponibilidade de medicamentos à base de cannabis está sendo preparada para 2025”, anunciou a ANSM.
Prevista na lei de financiamento da Segurança Social de 2024, a legalização do uso de cannabis para fins terapêuticos deverá ocorrer até 1° de janeiro de 2025, assegura a autoridade de saúde.
“Esses medicamentos deverão ter autorização emitida pela ANSM até 31 de dezembro de 2024”, por um período de cinco anos. Desta forma, esses medicamentos estarão acessíveis aos pacientes mediante prescrição médica.
Entretanto, no fim de março deste ano terminou uma experiência em grande escala com medicamentos à base de cannabis para recolher dados para investigação. O ensaio começou em 2021 e admitiu 3.035 pacientes que sofrem de doenças graves.
Experiências
Valérie Vedere foi diagnosticada com HIV em 1992 e depois com câncer na garganta em 2012. Ao longo dos anos, os tratamentos tradicionais têm lhe provocado grande desconforto.
“É como se as minhas mãos e pés estivessem sendo espremidos em um torno, o que causa sensações extremas de ardência e formigamento. Também tenho espasmos musculares que geralmente ocorrem no final do dia”, explica Vedere, citada na France24.
Ela relata que a dor crônica é algo que não pode ser tratada com analgésicos como tramadol ou outros opioides: “Não é adequado a longo prazo”. Quando os testes para uso do canabidiol começou, Vedere estava decidida a participar.
“Eu já usava cannabis ilegalmente para aliviar os meus sintomas. Agora, eu poderia passar a usá-la legalmente e ter um acompanhamento consistente com o meu médico”, declarou. O médico de Valérie considerou-a uma “candidata perfeita para o ensaio” e, assim, ela se tornou uma participante em maio de 2021.
Mylène tem 26 anos e mora em Paris. Sofre de cefaleia – condição que resulta em dores de cabeça recorrentes e extremamente dolorosas. “Elas são brutais. A dor é permanente, sete dias por semana. Não têm dado tréguas desde que começaram em 2014”, observa. “E às vezes tenho um ataque particularmente doloroso, e é como se dois blocos de cimento estivessem batendo contra a minha cabeça”, relatou.
“Tentei todos os tipos de tratamento. Paracetamol, ibuprofeno, opioides como tramadol e até morfina. Ou o remédio não fazia efeito em mim ou os efeitos colaterais eram muito intensos”, acrescentou.
A jovem radiologista revela que entrou “no estudo no final de dezembro de 2023”. “Comecei a tomar gotas de cannabis medicinal de manhã e à noite. Passaram-se quase três meses e já estou começando a sentir alívio. Sinto uma mudança, o tratamento está realmente surtindo efeito”, diz Mylène.
Experiência de três anos
Os primeiros resultados foram apresentados dois anos após o início do estudo, e ficou evidente que os sintomas dos pacientes melhoraram significativamente: “91% dos pacientes relatam estar satisfeitos com a medicação”, de acordo com o relatório citado na publicação Business of Cannabis. Não foi relatado nenhum caso de dependência química de substâncias e não se detectaram efeitos secundários inesperados.
“As nossas avaliações mostram que, entre 30% e 40% dos sintomas como dor, espasmos, qualidade de vida ou crises epiléticas, por exemplo, melhoraram significativamente”, afirma Nicolas Authier, médico especializado em farmacologia, dependência e dor.
A experiência “sem precedentes” abrangeu 275 unidades de saúde de França. Foi criado um comitê de cientistas interdisciplinares – composto majoritariamente por profissionais de saúde e pacientes –, encarregado de monitorar o ensaio sobre a cannabis medicinal, que é presidido por Authier.
As prescrições foram previamente limitadas pelas autoridades de saúde que estabeleceram cinco condições específicas: dor neuropática, algumas formas de epilepsia resistentes aos medicamentos, sintomas oncológicos intensos relacionados ao câncer ou ou tratamento do câncer, situações paliativas e patologias que afetam o sistema nervoso, como a esclerose múltipla.
Também determinaram que os doentes que integrassem este estudo só receberiam medicamentos à base de cannabis se o tratamento disponível fosse considerado insuficiente ou se apresentassem aversão aos medicamentos existentes.
Os canabidióis foram administrados ora em gotas de óleo, geralmente por via oral, ora inalados em vaporizadores.
“A maioria dos pacientes recebeu medicamentos à base de cannabis em forma de óleo, que é o tratamento que tem efeito mais duradouro”, observa Authier. “Porém as gotículas de óleo não previnem picos de dor intensa que só podem ser aliviados com medicamentos de ação rápida. Por isso, às vezes, adicionávamos flores secas de cannabis que os pacientes puderam inalar usando um vaporizador. Os efeitos não duram muito, mas são muito rápidos”, argumenta.
Graus de THC e CBD
Os dois principais compostos exclusivos da planta de cannabis, conhecidos como canabinóides, são os THC e CBD.
O THC (tetrahidrocanabinol) é o principal composto psicoativo, responsável pelos sintomas de euforia e sensação de relaxamento conhecido pelos consumidores habituais. O THC também possui propriedades analgésicas, anti-inflamatórias e antioxidantes, sendo muito eficiente no combate à dor.
Já o CBD (canabidiol), é o segundo composto mais presente na planta. Ainda é psicoativo, mas não tem o mesmo efeito intoxicante que o THC. O CBD revela-se um potencial constituinte para tratar a epilepsia e esquizofrenia.
Em fevereiro de 2024, a agência de medicamentos francesa decidiu deixar de prescrever cannabis em forma de flor. “Parece que a flor de cannabis medicinal é muito semelhante à flor de cannabis ilícita consumida para fins recreativos. Portanto, isso poderia causar confusão e talvez despertar receios de um potencial mercado ilegal”, alega Authier.
Entretanto com o fim dos testes gratuitos, apenas 1.842 pacientes irão continuar com os tratamentos monitorados. Para Valérie, tanto os óleos quanto as flores são “indispensáveis” e ela não quer voltar a tomar opioides.
Impasse da indústria
Aplicando as cinco condições médicas que justificam este tipo de tratamento, Nicolas Authier argumenta que existem entre 150 e 300 mil doentes em França que poderiam se beneficiar da prescrição de medicamentos à base de cannabis. Por isso, questiona-se sobre se a indústria farmacêutica vive um impasse para avançar com a produção dos fármacos.
Os medicamentos utilizados no ensaio foram fornecidos por empresas israelenses, australianas e alemãs, mas com distribuição francesa, relembra o médico, o que pode sugerir que a Alemanha e França estão na dianteira da Europa para se tornarem um importante mercado de cannabis medicinal.
“Atualmente, os medicamentos à base de cannabis são dispensados em hospitais ou em farmácias hospitalares, mas, a longo prazo, a maioria deles estará disponível em farmácias regulares, tal como qualquer outro medicamento”, acredita Authier.
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